Em uma situação inusitada, o escritor brasileiro Julián Fuks cometeu um “erro” ao responder uma questão do Enem, que trazia um trecho do seu livro “A Resistência”, publicado em 2015 pela Companhia das Letras. A questão, que fazia referência ao livro, foi respondida de forma “incorreta” pelo autor, o que gerou uma onda de comentários nas redes sociais e entre estudantes.
Julián Fuks foi pego de surpresa nesta última semana, ao ser informado de que o trecho de um dos seus livros foi parar em uma questão do Enem deste ano. “Nem preciso dizer quanto me senti lisonjeado ao ver um livro meu virando pergunta no Enem. Susto, satisfação, alegria, estranhamento, tudo isso compôs com graça a experiência... A pergunta é difícil, intrincada, incerta. Eu mesmo não saberia explicar com toda convicção o que há por trás dessas reflexões do meu narrador”, escreveu em seu Instagram, no último dia 4 de novembro.
Em outra publicação, Fuks comentou: “Desde o fim da tarde de domingo começavam a pulular as mensagens, simpáticas, festivas, até eufóricas. Havia caído uma pergunta sobre meu livro A resistência no Enem e os amigos se apressavam em me dar a notícia, em alardear que quatro milhões de pessoas haviam sido expostas no mesmo instante a um parágrafo meu, e que aquilo era motivo de grande honra. Senti de fato essa alegria vaidosa que jamais deveria render uma crônica. Mas senti também um súbito e inegável receio de que falhasse a minha comunicação com aqueles quatro milhões de jovens, que naquela tensa situação de prova poderiam odiar minhas abstrações, meus adjetivos excessivos, meus significados esquivos, minha sintaxe sinuosa demais”.
“O receio se agravou quando enfim bati os olhos naquela questão 29 e me vi perdido entre suas opções de resposta, quase todas razoavelmente exatas, quase todas à sua maneira, próximas do que eu desejara dizer naquela passagem. Não costumo me sair mal em provas; como é necessário em tempo hábil formar convicção por uma resposta, escolhi a alternativa que me pareceu mais adequada e já me pus a esclarecer quem me consultasse, a D era a resposta certa. Não foi uma surpresa absoluta quando começaram a despontar os gabaritos revelando o meu vexame: eu havia errado uma pergunta sobre as intenções do narrador da minha própria obra”, continuou.
O episódio gerou uma discussão sobre a importância de estar atento e preparado, mesmo para aqueles que já possuem um alto nível de conhecimento sobre o assunto. Além disso, o autor destacou a vulnerabilidade humana, mesmo entre profissionais renomados: “Não costumo me sair mal em provas; como é necessário em tempo hábil formar convicção por uma resposta, escolhi a alternativa que me pareceu mais adequada e já me pus a esclarecer quem me consultasse, a D era a resposta certa. Não foi uma surpresa absoluta quando começaram a despontar os gabaritos revelando o meu vexame: eu havia errado uma pergunta sobre as intenções do narrador da minha própria obra”, escreveu em sua coluna no Ecoa (UOL).
“Ali eu chegava enfim a entender por que meu erro no Enem, ou por que o erro do Enem, não me causava nem espanto nem choque. Estávamos apenas diante de mais uma manifestação da literatura em sua complexidade, em sua infinita nuance, em sua natureza insondável. Não se espere da literatura, nem das mensagens dos escritores, nem das interpretações dos críticos, nem das deduções dos examinadores, nenhum tipo de exatidão. Essa expectativa é de todo contrária à vocação da literatura, que é mais rica e mais veraz quanto mais ambígua se mostrar, quanto mais resistente a reduções simplistas. É assim que ela continua a suscitar suas infindáveis perguntas, que podem muito bem ajudar a compor os exames nacionais, ainda que delas em última instância ninguém consiga depurar respostas corretas, nem mesmo os seus autores”, desabafa.
O próprio escritor reconheceu o erro, admitindo que foi um momento de desconforto. Ele destacou que, apesar de sua experiência e conhecimento sobre o livro, a pressão do exame pode ter contribuído para o erro. “Eis a lição que a literatura tem a oferecer nesses sinuosos domínios do conhecimento: num mundo cioso demais de suas verdades, é a lição da dúvida irreparável, a lição do imperscrutável, do indefinível”, finaliza.
A obra “A Resistência” traz a história de uma família de intelectuais argentinos que vieram para o Brasil após o golpe militar na Argentina em 1976. Adotam uma criança e, posteriormente, têm outros filhos biológicos. A intrincada relação familiar é observada por Sebástian, o irmão caçula, que, ao compreender a história de seus pais e as emoções de seu irmão adotivo, procura reescrever essa narrativa familiar.
Julián Fuks nasceu em São Paulo, em 1981. É autor de “A procura do romance”, “Histórias de literatura e cegueira”, ambos finalistas dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom, e dos romances “A resistência”, traduzido para cinco línguas e vencedor dos prêmios Jabuti de Livro do Ano de Ficção e Melhor Romance (2016), Prêmio Literário José Saramago (2017) e o Prêmio Anna Seghers (2018), e “A ocupação”, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Oceanos (2020). O escritor foi eleito pela revista Granta um dos “melhores jovens escritores brasileiros”.